Uma Análise a Crónica do Pássaro de Corda: O Mistério que é May Kasahara

13:58:00

Imagem por Mark Boardman
E aqui está a terceira e muito sofrida parte da Análise a este alucinado livro. Sofrida porque lá tive de tentar perceber e desvendar aquela que é uma das minhas Personagens Preferidas de Sempre™ e oh Jesus em sunga, não foi fácil. Espero que se divirtam com as minhas desesperadas tentativas de compreensão da menina Kasahara, porque eu de certeza que me diverti sofridamente a escrevê-las.

O Mistério que é May Kasahara

May Kasahara é, como dizem os anglófonos, a riddle, wrapped in a mystery, inside an enigma. É, à primeira vista, uma rapariguinha adolescente sem perspetivas de futuro nem gosto pelos estudos com tendência a filosofar sobre as coisas mais estranhas e a encontrar significados nas coisas mais simples. No entanto, tem uma enorme participação no enredo, direta ou indiretamente.

É May que:
  • Se queixa a Toru que o seu nome é difícil de pronunciar, o que faz com que Toru adote, para ela, o nome de Pássaro de Corda - e estabeleça a sua posição como "aquele que dá corda ao mundo" (ie aquele que faz o destino avançar).
  • Fecha Toru no poço sem maneira de sair, obrigando-o a ter de ficar lá até ter a sua revelação sobre o mundo onírico.
  • Dá-nos a maior pista acerca do que é a "Coisa" que se encontra no interior das pessoas, como já foi revelado no post sobre as Coisas.
  •  É a única personagem além de Noboru e Kumiko que tem uma influência constante no enredo que não implica a sua participação ativa. E ainda que este tipo de participação se possa explicar nos irmãos Wataya visto serem da família do protagonista e aqueles que fazem diretamente parte da história (sendo, respetivamente, o antagonista e o interesse romântico), o mesmo já não se aplica a May - porque tem ela este poder de coesão do enredo sem ser, no entanto, uma personagem com a mesma importância deles?
  •  Tem também, de alguma forma, poderes psíquicos, visto conseguir ouvir Toru chamar por ela quando estava a afogar-se no fundo do poço, apesar de estarem a milhas de distância e conseguir sentir o fluir do destino (ie a parte em que"banha o corpo na luz da lua").
É uma personagem a quem o enredo parece prestar pouca atenção e que, no entanto, dá as maiores pistas sobre o significado oculto das coisas e as metáforas que Murakami entrelaça no enredo. Podia até afirmar-se que May é um plot device, mas até isso não seria cem por cento correto por duas razões: 
  • May não existe com o único propósito de fornecer informação, visto ter uma história muito complexa por si só. 
  • As informações que nos dá são peças soltas de um puzzle enorme que não fazem sentido para o enredo logo quando são dadas; o plot device é normalmente usado quando é necessária dar uma informação para prosseguir com a história, mas as divagações de May só são compreendidas como verdadeiras pistas muito depois de o enredo já ter passado da altura em que as dá. 
E o que é que se pode retirar daqui, então? Bom, para começar é preciso notar que a Crónica do Pássaro de Corda é um livro desorganizado em termos de plot e subplots - ainda que Murakami tente atar todas as pontas soltas e fechar o círculo a todas as histórias, isto não acontece. Canela e Noz-Moscada desaparecem, o Tenente Mamiya idem, Creta Kano aparece apenas uma última vez para nos dar um paralelismo entre ela e Kumiko... apesar de ser um livro tremendamente interessante, fica muita coisa em aberto e à deliberação do leitor - e atrevo-me a dizer que May é uma delas.

Não há consenso relativamente a quem ou o que foi May Kasahara. Alguns dizem que é apenas uma personagem como as outras, apenas com uma participação mais ativa para dar uns nudges ao leitor e outros, como eu, preferem aquela teoria que diz que May é na realidade a psíquica mais poderosa de todos, ainda que não saiba expressar os seus poderes.

E esta falta de expressão deve-se só a não ter os guias que Toru teve. Toru contou com Honda que lhe profetizou sobre a água e o poço, Malta Kano que o iniciou no mundo do sobrenatural, Mamiya que lhe forneceu a conexão com o passado, Noz-Moscada que lhe deu uma plataforma na qual manifestar os seus poderes... o gajo teve ajuda a rodos. May só teve contacto com Toru, que nada lhe contou sobre aquelas descobertas e estava tão ou mais perdido que ela sobre as coisas que sentia.

E mesmo assim, ela conseguiu palmilhar um bom caminho sozinha: aperceber-se da existência das Coisas e de como elas influenciam as pessoas; perceber, ainda que não conscientemente, o funcionamento do poço e do isolamento enquanto local de amplificação mental... podemos até estabelecer um paralelo entre a sua estadia na isolada fábrica de perucas e o retiro espiritual de Malta Kano; ambas perceberam que não conseguiam progredir enquanto pessoas no sítio onde estavam, então deslocaram-se para um sítio pelo qual sentiam uma afinidade espiritual para se tentarem encontrar - Malta com a Ilha de Malta, May com as perucas e a fábrica.

Atrevo-me até a dizer: se houvesse uma continuação, uma sequela, não duvido que se focasse em May como a nova pessoa que dá corda ao mundo. E nessa hipotética situação, ela e Noz-Moscada haviam de criar o Inferno na Terra para todos os destruidores de Coisas como Noboru, e Canela ia sofrer com as saídas da rapariga que tem spiritual breakthroughs sobre a morte e a existência com a naturalidade de quem fala sobre o tempo para amanhã.

As Outras Partes

A Realidade | O Homem da Guitarra | Toru e Noboru: Dicotomias e Antagonismos | As Coisas | O Homem Vazio

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