Uma Análise a Crónica a Pássaro de Corda: A Realidade

17:19:00

Imagem por Mark Boardman

Há uns dias acabei de ler a Crónica do Pássado de Corda de Haruki Murakami, e imediatamente me pus a pesquisar e a escrever o que eu pensava que ia ser uma pequena análise sobre as várias camadas da obra. Mas acabei com um texto quilométrico que, vai que não vai, ainda submeto como tese final de curso se a coisa der para o torto e não tiver nada pronto. Pensa-se sempre no amanhã.

Assim, decidi dividir a análise em seis posts, cada um abordando uma diferente parte da narrativa. Se isto conseguir ajudar alguém nas suas andanças pela literatura, de nada. Se não, ao menos serve para expurgar este livro da minha mente. Isto ser daquelas pessoas que pensa numa uma história durante vinte semanas seguidas após a ter lido é uma coisa do diabo.

Pequeno aviso: isto não é uma review, é uma (tentativa de) análise. O que significa que, para tentar esmiuçar o texto e o possível sentido de coisas que provavelmente até nem têm sentido nenhum, isto vai estar carregadinho de spoilers - depois não venham dizer que eu vos estraguei a leitura.


A Realidade

A realidade é que não sei que puto se passa nesta obra.

Brincadeira. A Realidade é um tema central na Crónica do Pássaro de Corda. Durante toda a obra, Toru debate-se sobre o que é real na sua vida e o que não é. Será que os seus sonhos são reais? Será que as premonições do velho Honda e de Malta Kano são reais? Qual é a realidade - a verdade factual - por detrás da máscara mediática do seu cunhado Noboru Wataya e das alegações de violação que Malta fez, a realidade por detrás dos seus próprios poderes?

Murakami brinca com a dicotomia de realidade e irrealidade, realidade pessoal e realidade social, no decorrer da obra. À medida que nos vamos embrenhando na história, a linha entre a metáfora e facto, mundo real e mundo psíquico, vai-se atenuando - até chegarmos a um primeiro breaking point com o Homem da Guitarra, e a partir daí então é o caos. Mas já lá vamos.

Um dos primeiros vislumbres que temos da tenuidade entre real e irreal é na concretização das profecias do senhor Honda.

"A ideia, aqui, é não resistir à corrente. Vem-se à tona quando se tem de vir e mergulha-se quando tem de se mergulhar. Quando tiveres de subir, procura a torre mais alta e trepa por ela até ao topo. Quando tiveres de descer, procura o poço mais fundo e desce até ao fim"

   
E qualquer pessoa que lê isto interpreta, em primeira análise, como uma metáfora; no entanto, mais à frente, quando Toru se apercebe que a vida dele está numa fase de decaimento, o que é que ele faz? Literalmente, desce ao fundo de um poço seco para pensar. E isto acaba por lhe dar as respostas de que precisa, da maneira mais convulsa e surrealista de que tenho ideia.

"Sim, agora não há corrente. Agora é tempo de ficar quieto. Não é preciso fazer nada. Mas é preciso ter atenção à água. Num futuro próximo, este jovem arrisca-se a viver uma experiência penosa com a água."

    
A história de Toru, e consequentemente a história do Pássaro de Corda, é uma história sobre dor. É a dor, as experiências traumáticas e penosas, que constituem o ponto de viragem na psique das personagens e o seu spiritual awakening. Este, por sua vez, possibilita ao destino voltar ao seu curso natural - à sua corrente. Tudo muito metafórico, mas quando o ciclo fecha e o destino avança, fecha literalmente com Toru a quase afogar-se no fundo de um poço seco que subitamente começa a jorrar água. O limite entre o que é real e o que é metafórico quase não existe, e as profecias são em iguais partes uma metáfora para algo superior, e uma manifestação física, real.

Esta conjugação de realidades também se encontra entre o mundo onírico e o mundo físico pelos quais Toru transita. Esta entra em vários pontos do enredo, especialmente na sua relação com Creta Kano, mas só se torna realmente visível na última instância do em que Toru visita o mundo onírico: a realidade onírica era que Toru provocara um traumatismo craniano em Noboru, e este entrara em coma, e esta manifestou-se na realidade física sob a forma de um derrame cerebral em Noboru. A Criatura que o perseguiu até ao quarto do hotel onírico cortou-lhe a cara e o braço, e estes ferimentos manifestaram-se no seu corpo real.

Há muito quem teorize que isto em si se trata de uma metáfora, em como não existe uma só realidade mas várias, uma realidade para cada indivíduo e cada coletivo, e que estas têm estreitos pontos de contacto e se influenciam umas às outras. O que eu considero real pode afetar a realidade de outra pessoa ou o que o coletivo considera real, e vice versa. A cena do hotel onírico é outra prova disso - Toru sabia que não tinha cometido aquele crime, mas as pessoas que viam a notícia na televisão acreditavam que sim - a realidade onírica era que ele tinha cometido o crime, e isso afetou a sua realidade ao desencadear a perseguição, e forçá-lo a fechar o seu ciclo.


As Outras Partes

O Homem da Guitarra | Toru e Noboru: Dicotomias e Antagonismos | O Mistério que é May Kasahara | As Coisas | O Homem Vazio

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