Aconteceu assim: esta santa pessoa que estuda em Lisboa teve a iluminada ideia de me convidar a a mim e a esta outra pessoa a ir passear a pevide com ele lá para a capital. Não sei como é que alguém considera ter a minha chata alminha na sua casa durante três dias uma boa ideia, mas calo a minha boca e não me queixo. Rever amigos, viajar e aproveitar para experimentar aqueles especiais de natal do Starbucks é o melhor início de férias que poderia pedir.

Dividimos o nosso tempo de forma responsável e organizada, para podermos aproveitar e visitar o maior número de sítios possível. Quer isto dizer, levámos dois dias de turismo frenético e visitas à Fundação Calouste Gulbenkian, Colombo, Chiado, baixa e zonas de interesse cultural e histórico, e outro num ócio infinito em casa a ver Ficheiros Secretos, filmes podríssimos (aka Knock Knock) e reality shows da MTV. Somos turistas experientes, não questionem os nossos métodos.

Já há muito tinha decidido mudar-me para Lisboa quando acabasse a licenciatura, só pela amplitude que morar na capital oferece. Mas faz-me parecer que a cada vez que lá vou, as certezas adensam-se; gosto demasiado do ambiente caótico urbano para conseguir viver o resto da vida numa zona calma, quero um lugar muito maior para explorar e conhecer do que uma pequena cidade, quero estar onde as coisas acontecem. 

Um dia acontecerá. Por agora, vou explorando o que posso.

Imagem: Business Insider

No outro dia, enquanto pesquisava por notícias literárias interessantes, chegou-me às mãos (ou aos olhos, se quisermos ser tecnicamente corretos) uma notícia tão caricata que parecia saída do The Onion ou da CMTV: foi editado um livro de poesia por Donald Trump.

Mas calma, que se pararmos por aqui ficam mal informados. Corrijo-me: é um livro que contém, realmente, pérolas saídas realmente da boca blasfema do nosso amiguinho fascista que todos amamos odiar; mas estes diamantes em bruto passaram depois pelas mãos de Hart Seely, um repórter e humorista nova-iorquino autor de The Juju Rules: Or, How to Win Ballgames from Your Couch, que viu neles não só uma oportunidade de fazer rodos de dinheiro à custa de um pseudo-político com uma capivara colada ao couro cabeludo, como também de avacalhar mais um bocado com ele. E assim, transformou excertos de entrevistas de Trump em poemas que compilou no seu mais recente Bard of the Deal - The Poetry of Donald Trump.

Agora era aquela altura em que eu, como SJW de carteirinha que sou, me insurgia contra isto e apontava o dedo ao Seely como aproveitador das tendências atuais, desenvergonhado milker de todo o circo da bizarrice que se formou em volta do ridiculamente preconceituoso candidato à presidência dos EUA. Mas depois deparo-me com excertos do livro:

Imagem: Buzzfeed

E pronto, fico sem argumento, sem fôlego de tanto rir, e acabo por admitir que o Trump merece toda a chacota que se lhe puder dirigir, e que os outros ganhem dinheiro à custa da sua bestice. Props para ti, Hart Seely. Transformaste o escandalosamente estupidificador discurso daquela arara com polegares no pináculo da literatura contemporânea. Agora, é só esperar; visto que Trump manda bejardas dignas do mais fundo dos facepalms numa base diária, só podemos ter esperança por um segundo volume.

Bard of the Deal na Harper Collins

Fonte: Ceschini

Muito se fala estes dias sobre a “cultura selfie”, a “geração selfie”, o escárnio e o desprezo a tudo quanto sejam jovens (e às vezes menos jovens) que esticam o braço para tirar uma foto a si próprios com aquela abençoada câmara frontal do smartphone que lá tiverem. Bom, às vezes nem tão abençoada é, já que a qualidade de imagem de uma câmara frontal é só equiparável a uma daquelas câmaras de cartão e papel de alumínio que os alunos de Fotografia Analógica constroem como projeto inicial da disciplina. Mas sempre é melhor que usar a câmara traseira e rezar para que a foto às cegas não saia tremida.

Mas divago. Muita gente vê estas designadas selfies o pináculo da vaidade e arrogância. Como se este pináculo não pudesse ser mais facilmente encarnado pelos nossos longínquos antepassados de classes mais abastadas que, se bem me recordo, pagavam rodos de dinheiro a pintores famosos e ficavam sentados, imóveis, horas a fio, para que pudessem ser imortalizados por estes a tinta a óleo e molduras floreadas a ouro a modo de serem observados em todo o seu esplendor estilizado pelas gerações seguintes. Não, este tipo de vaidade aparentemente fica a milhas de uma foto editada em cinco minutos no Retrica. 

Mas os opositores às selfies são amnésicos em relação a muita coisa para além disto. Esquecem-se, por exemplo, que a publicidade atualmente tem como alicerce o esfrangalhar da auto-estima dos jovens. Come menos, veste-te com roupas mais caras, usa maquilhagem e medicamentos para as borbulhas. Só tens valor se te vestires assim, se te comportares assim, se tiveres isto e comeres aquilo e fizeres isto. A publicidade, a própria sociedade endereça os jovens com um tom de condescendência arrogante, um “ainda não és nada, ainda não vales nada”. O valor de alguém está preso ao seguir de um status quo rígido, aparentemente imutável, intrinsecamente comercial. As empresas lucram com a baixa auto-estima dos jovens – é um facto, apesar de disfarçado e nunca admitido.

Então não será, cogito, o ato de tirar uma selfie um ato de rebelião contra esse sistema?

Alguém que tira uma selfie diz nas entrelinhas:  “este sou eu. Eu tiro fotos a mim próprio porque gosto de mim. Sou eu próprio que a tiro porque controlo a forma como me apresento”. E fora com as condescendências de que gostar de si próprio é igual a vaidade, de que uma autoestima alta é o mesmo que arrogância. Baixa autoestima é tóxica, torna as pessoas inseguras, duvidosas das suas próprias capacidades, incertas do seu lugar no mundo, moldáveis por empresas, entidades, publicidade, marcas. Uma autoestima alta é a segurança de saber que temos lugar, que merecemos os nossos sonhos, as nossas opiniões. É saber que temos valor, ainda que tudo à volta o negue. Será uma selfie capaz de atingir tudo isto? Não necessariamente. Mas o escárnio face a uma demonstração de autoestima certamente que também não ajuda.

Tirar uma selfie é um ato de amor próprio num mundo que lucra com o ódio. Deixem lá as pessoas tirarem o raio da foto.

Atualmente, graças à massificação da informação e dos meios de comunicação, existe uma diversidade quase infindável de materiais mediáticos disponíveis na web. Para cada área de interesse existe um número virtualmente incontável de sites, blogs, páginas pessoais, empresariais, associativas ou até anónimas acerca do assunto. No entanto, neste mar de conteúdos, a parte não-mainstream que não adquiriu ainda uma amplitude às massas acaba por passar despercebida, ainda que os seus conteúdos sejam social, cultural e literáriamente relevantes. Assim, hoje senti-me na necessidade de trazer à tona o The Offing.

The Offing é uma revista online em inglês, pertencente à revista cultural Los Angeles Review of Books. Foca-se em "escrita criativa de todos os géneros e arte de todos os meios", que pretende, através da compreensão das convenções sociais em que a cultura, a literatura e a arte se insere, quebrá-las e desafiá-las.

Uma das formas com que o The Offing o faz, além do convite à experimentação artística a que convida tanto os seus colaboradores como os seus leitores, é também o convite a que vozes marginalizadas, tanto socialmente como no meio literário, se expressem através da revista. A sua linha colaborativa está especialmente aberta a pessoas de cor, membros do LGBTQIA, mulheres, pessoas de género não binário e pessoas portadoras de deficiência.

As suas categorias principais são Ficção, Poesia, Ensaio/Memoir, e de entre os seus departamentos secundários destacam-se Dead Letter Office (textos ficcionais ou reais escritos em formato de carta) e Wit's End, a sua secção de humor. Os colaboradores têm liberdade criativa e de temas dentro das diversas categorias, mas grande parte dos textos se inserem em assuntos atuais e os problemas sociais que as minorias enfrentam.

Atualmente, desde dia 18 de novembro, a coluna Trans Issue 2015 tem publicado textos transversais a todas as categorias que se insiram na temática da transsexualidade. Dentro desta, não posso deixar de destacar Couldn't Hear You Anymore, um texto ficcional de cortar a respiração da autoria de Casey Plett e Queer as Verb, um artigo acerca de sete artistas trans e não-binários que merecem o spotlight de Aricka Foreman.