In the Flesh

19:10:00


Há uns tempos começou, vinda não se sabe muito bem de onde, uma febre dos zombies a nível da ficção mediatizada. Em todo o lado começaram a surgir séries, filmes, jogos, bandas desenhadas, tudo virado para as milhentas maneiras de que a humanidade se poderia lixar se os mortos voltassem à vida.

A minha teoria é que o descontentamento e falta de esperança da humanidade em geral transmutou as nossas fantasias de como será o futuro de gadgets giros e carros voadores para a natureza e os nossos próprios erros nos erradicarem da face da terra. Algo digno de análise sociológica, se me perguntarem.

Posso dizer que estive mais ou menos a boiar no acontecimento: para além de The Walking Dead, jogo e série, vi World War Z, assisti aos playthroughts de The Last of Us, enfim, aproveitei a onda enquanto ela durou. Nunca falei de nada disso por aqui por motivos óbvios - são grandes títulos de toda a gente já ouvira falar, e não era grande aposta ir repetir aquilo que toda a gente já disse. No entanto, esta série é diferente: porque é estupendamente boa, e no entanto com muito pouca fama.

O que não merece que aconteça. Então sentem-se para aí, que eu vou-vos doutrinar nesta obra-prima.



Esqueçam os zombies como cadáveres reanimados com instintos selvagens e animais, que os bravos protagonistas humanos matam aos molhes para sobreviver. Pensem antes num mundo onde o ser morto-vivo é uma doença com nome e cura.

Neste mundo, os portadores da Síndrome do Falecimento Parcial, ao serem encontrados no seu estado selvagem, são enviados para um campo de tratamento, tratados, e reinseridos na sociedade. O que seria tudo muito bonito, comovente até para as famílias cujos ente-queridos pereceram para agora voltar, se os portadores da Síndrome não se ficassem a parecer permanentemente como literais cadáveres:


 
O voltar dos mortos à vida consciente e a sua tentativa de reinserção na sociedade é o tema sob o qual revolve a série. Uma sociedade que, anteriormente à descoberta da cura, foi atacada e ameaçada por zombies em estado selvagem, agora debate-se em tentar aceitá-los novamente no seu seio. Estas tentativas são, porém, chacinadas pela discriminação, pela intolerância, por rebeliões e crimes de ódio.

E como personagem principal, temos Kieren, um quase literal anjo. Um rapaz portador da Síndrome, que reviveu e foi reabilitado. No entanto, ao voltar para casa, depara-se com uma comunidade que não o aceita pelo que ele é, por aquilo que ele não escolheu ser, e que odeia e ostraciza todos aqueles que, como ele, voltaram dos mortos. Kier é educado no sentido de usar sempre lentes de contacto e mousse para esconder a sua verdadeira aparência, a esconder-se ser mais facilmente aceite.

Não vos começa a parecer analogia para alguma coisa?

O enredo gira em torno de Kieren e da sua vida como portador da Síndrome, ao mesmo tempo que explora os intrincados meios de marginalização que a sociedade aplica a um grupo minoritário. Passa por política, por religião, por sociedade e pelo ser humano em si. A forma como tratam o assunto da discriminação é, já agora, de mestre; as dificuldades por que os portadores da Síndrome passam não são romantizadas, os motivos dos agressores, por muito válidos que pareçam, não são dados como desculpa para as atrocidades que ocorrem, as situações são gritantemente relacionáveis com a sociedade atual.

Além disso, conta com um elenco fantástico de personagens tridimensionais, multifacetadas, completas em todo o sentido. Personagens cliché? Nem vê-las. Personagens femininas utilizadas como mero chamariz de male gaze? Nope, toda a gente tem character arcs interessantíssimos, preocupações e personalidade e vida. O já conhecido gajo cuja única função é soltar umas asneiras e servir de alívio cómico? Isso querias tu. Vais chorar, e vais chorar bem. Todas as personagens têm o direito a ter falhas, e é de uma mestria a forma como se desenvolvem no decorrer da série. Sem querer spoilear, tenham em especial atenção o desenvolvimento de uma personagem de nome Jem, e vão perceber do que falo.


Tem ainda, para além da analogia em si, uma sólida representação de minorias, mas sobre isso não posso comentar, que corria o risco de andar a contar tudo.

A série têm duas temporadas, a primeira de três e a segunda de seis episódios, e pode ser vista sem legendas aqui.

O futuro da série e o prosseguimento com uma terceira temporada são um sonho distante, já agora - apesar de ter tido um feedback muito positivo pela parte de uma considerável audiência de fãs, os atores quererem fervorosamente que a série continue, e os criadores terem uma bíblia de mais de cem páginas com os planos da história, problemas relacionados com o canal BBC 3 fizeram com que a série fosse cancelada. Nós não podemos ter coisas boas. Nope.

A minha opinião é óbvia e imutável: eu vendia a minha alma se for necessário, só para a série poder continuar. Uma obra destas merece muito, muito mais do que a exposição mínima que está a ter (só para terem uma ideia, a série não passa em canal português algum - canais que, enquanto isso, já estão a repetir pela terceira vez todos os spin-offs do CSI) e um futuro incerto.

Quanto a mim, não só é uma pena como o reflexo de uma sociedade. Mas melhores dias virão.


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