Sobre a verdade e a falta dela

17:17:00

French Peace Sign por Jean Jullien | Da Man Wit the Chips por Robert Cohen

No dia quatro de agosto de 2014, Mike Brown, um cidadão afro-americano, foi alvejado e morto pelo agente policial Darren Wilson enquanto estava completamente desarmado e sem ter oferecido resistência à lei. Ao assassinato seguiu-se um debate desconfortável para os cidadãos norte-americanos: até que ponto estava o racismo institucional não só a obstruir a lei, como a moldar a opinião pública? 

Os órgãos de comunicação social ofereceram uma resposta nada animadora: pelos meses que se seguiram, o acontecimento foi deturpado por canais como a FOX News e a CNN, que investigaram o passado do rapaz de dezoito anos em busca de antecedentes criminais e noticiaram em falsidade que, no confronto, Brown estava armado, era traficante de droga, aparecia em fotos nas quais parecia fazer “sinais de gangues” (que acabaram por se provar apenas peace signs) ou qualquer outra desinformação que lhes parecesse justificar o assassinato de um adolescente por um polícia.

E em consequência, os meios de comunicação digitais enchiam-se de informação contraditória: apoiantes de Darren Wilson e apoiantes de Mike Brown dividiam-se entre partilhas de Facebook, blogs pessoais e artigos de sites ditos noticiosos, cada um com a sua versão da história, cada uma mais dispare que a outra. Qual era a verdade? Quem estava a mentir? Quem agia por interesse próprio, e quem tentava noticiar a verdade? A informação era de tal forma abundante e manipulada que se tornava difícil dizer. Por cada testemunha ocular, um comunicado policial. Por cada resultado de autópsia, um debate televisivo que questionava a veracidade da classe social de Brown como um todo. A verdade, dispersa.

A treze de novembro de 2015, uma série de atentados terroristas cuja autoria foi assumida pelo ISIS/Daesh atingiu quatro zonas de Paris: o Stade de France, a sala de espetáculos Bataclan, o café La Belle Equipe e a Rua Bichat. A internet disparou, sites noticiosos como o Observador e o Público a atualizarem as suas páginas em direto, ao minuto, com informações dos atentados a decorrer. Os sites menos noticiosos e blogs enchiam-se de cogitações, considerações, opiniões disfarçadas de informação, alguns toques de xenofobia a transparecer em discursos inflamados e sensacionalistas. 

Fossem, no entanto, sites ditos fidedignos ou partilhas de Facebook, as informações variavam de qualquer maneira: o Público reportou 42 mortos no fim do ataque, o Observador reportou 60. O Público falava numa vítima portuguesa, o Observador em nenhuma. Dias mais tarde, vários órgãos de comunicação como o Diário de Notícias afirmavam que um dos responsáveis pelo ataque tinha entrado legalmente na União Europeia como refugiado – informação contestada pelos Serviços Secretos dos EUA e pela CNN, que duvidam da veracidade do passaporte e dizem poder ser uma falsificação.

E a opinião pública novamente se divide como lhe convém: os opositores aos refugiados sírios selecionam as notícias que acreditam na primeira versão, os outros escolhem a versão norte-americana dos factos. Os opositores ignoram que dois dos terroristas eram franceses, os outros usam este facto como um crachá ao peito.

Um debate complicado gera sempre dois (ou mais) lados da história. Dois lados da discussão, dois polos antagónicos de ideias (normalmente radicalmente diferentes) que acreditam estar certos. No entanto, uma situação de debate de ideias exige que haja também dois polos de verdade: um está certo, o outro errado. Existem os factos, e contra factos não há argumentos. Se os factos suportam um lado da história, o outro tem de estar, invariavelmente, errado. Ou Mike Brown estava armado, ou não estava. Ou um dos terroristas era refugiado, ou não era.

Mas estas duas situações vieram a exemplificar o quarto elemento que uma era de informação dispersada inseriu nos debates humanitários: já não existe o “Contra” o “A Favor” e os “Factos”. Existe, sim, o “Contra” o “A Favor”, o “Lado Mediatizado A dos Acontecimentos” e o “Lado Mediatizado B dos Acontecimentos”, sendo estes manipulados pelo que lhes favorecer mais. 

O que este excesso de informação mediatizada, contraditória, pouco fidedigna, trouxe a estes debates não foi ajuda: foi exatamente o contrário. Gerou dois polos de debate, ambos que se consideram o pináculo da verdade baseados cada um no seu jornal, cada um no seu site noticioso, cada um no seu blog de desinformação. Qual é o real? Qual diz a verdade? Qual apresenta os factos reais? Não se sabe, nunca se chegará a saber. Nunca haverá consenso, pois cada um dos lados aponta para a verdade que lhe convém, descredibilizando a verdade do outro.

A dispersão de informação trouxe uma partilha global de um âmbito inimaginável. Trouxe ao mundo uma amplitude de resolução de problemas como um todo – mas, como parece acontecer em qualquer descoberta humana, uma solução trouxe imediatamente novos problemas. O problema deste século prende-se, a meu ver, com a verdade.

Como se chega a um consenso quando existem duas verdades? Quem está certo quando ambos os lados estão certos? 

Os dois e nenhum, certamente.

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