REVIEW // Se Numa Noite de Inverno um Viajante

23:19:00

Se una notte d’Inverno un viaggiatore // Italo Calvino // 1979 (ed. 2009) // Editorial Teorema // 304 p.

Sinopse

É um romance sobre o prazer de ler romances; o protagonista é o leitor, que dez vezes começa a ler um livro que, devido a vicissitudes estranhas à sua vontade, não consegue acabar. Tive, pois, que escrever o início de dez romances de autores imaginários, todos eles de alguma forma diferentes de mim e diferentes entre si.
— Fonte: Wook

Opinião

Um livro sobre livros. Sobre o que é ser-se escritor e leitor, sobre a relação simbiótica - e, muitas vezes, parasítica - entre as duas entidades em cada extremidade de uma obra literária. E sobre o poder transformador que os livros, as histórias, têm.

Tudo isto embrulhado numa história que é uma colagem encantadoramente grosseira de fragmentos de histórias sem fim, que quebra as expetativas e convenções do que deve ser uma história bem estruturada. E que acaba, em última instância, por funcionar.

Se numa noite de Inverno um viajante é dos melhores exemplos de metaficção que consigo encontrar: não só compreende livros dentro de um livro, histórias dentro de uma história, mas propõe-se, através de personagens-tipo e situações inusitadas, criticar e deixar à luz de debate os vários processos que engloba o storytelling e a literatura: será que o leitor deve levar as suas próprias conceções para a leitura de algo novo? Ou será que deve abandonar todas as suas ideias prévias e partir para um livro como uma tabla rasa? Mas não serão essas conceções prévias, as experiências de cada leitor, aquilo que torna a leitura algo único e individual? O que é um autor? Do que vale um autor? Deverá um autor ter uma voz ativa na verdade do que é a sua obra, ou ser apenas uma sombra, uma entidade por detrás de um livro enquanto obra completa?

Sim, isto toca na Morte do Autor entre outras coisas, e fez-me dar pulinhos de contente.

O melhor é que o autor coloca as perguntas, mas não dá as respostas; deixa tanto ao Leitor-narrador como ao leitor-nós a liberdade de decidir. Se numa noite de Inverno um viajante não é uma doutrina acerca das opiniões pessoais do autor acerca do que é a literatura (ainda que se note uma certa acidez para com a leitura académica e analítica atribuída a Lotária), mas um partilhar de ideias e convite para ponderação conjunta.

Mas verdade seja dita, uma coisa que não me deixa de dar pena é o facto de o zé Calvino ter sido tão subversor nuns aspetos, e simultaneamente ter-se cingido tanto ao status quo e às expetativas clichê noutros.

Bem sei que o homem não podia (ou será que até podia?) ter escrito uma obra que fosse só subversões, sem nenhum ponto de contacto com aquilo que desejava sequer contrariar, mas acabou por desperdiçar potencial de personagens que poderiam ter sido muito mais - as irmãs Lotária e Ludmilla, recorrentes em toda a obra, passaram a ser apenas símbolos de dois tipos antagónicos de leitora. Ficaram-se pela bidimensionalidade do olhar desatento de um narrador/Leitor cujo foco é a sucessiva transformação da sua vida num romance típico.

E talvez até fosse esse o objetivo, a forma como a procura sucessiva pelo fim de uma história acabou por transmutar a realidade numa; mas a partir do momento em que Hermes Marana (que o narrador nem chega a conhecer) e Silas Flannery (que apenas aparece a a meio da obra), óbvias personagens-tipo, têm mais dimensão que duas deuteragonistas, uma pessoa chora. Imensamente.

All in all, é uma história sólida. A forma como a realidade se entrelaçava com a história, como a vida do Leitor se ia moldando ao tipo de livros que começava e não acabava, a enchente de temas sobre o que é a verdade da criação literária, foram bem entrelaçados e equilibrados entre si. A linguagem é um bocado convoluta nalguns pontos porque o Calvino come dicionários, mas não tira a imersão à história. É daqueles livros que se vai lento e ponderando.

★★★★☆

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